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Dinheiros públicos, vacinas privadas: as razões da produção a conta-gotas

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A pandemia da Covid-19 testou a capacidade de todas as instituições internacionais para uma resposta global. Os Estados pagaram, a ciência cumpriu. Mas a solidariedade que fez aparecer a vacina, desapareceu logo a seguir.

A 14 de Maio 2020, 140 líderes mundiais lançavam um apelo, secundado pela OMS, para o desenvolvimento rápido de uma vacina acessível e gratuita para todos, em todo o planeta. Estes líderes moviam-se a partir das duras lições do passado e afirmavam com uma clareza premonitória:

“Este não é o tempo de permitir que os interesses das empresas e governos mais ativos sejam colocados acima da necessidade universal de salvar vidas, ou de deixar esta tarefa moral gigantesca às forças de mercado. O acesso às vacinas e tratamentos como bens públicos globais é do interesse de toda humanidade. Não podemos permitir que os monopólios, competição bruta ou nacionalismo míope se atravessem neste caminho.”

Os autores do apelo sabiam do que falavam. E a resposta inicial continha elementos promissores. O desenvolvimento da vacina contou com um abundante financiamento público dos Estados. Na chamada investigação fundamental, que possibilitou a tecnologia mRNA, e também na aplicação desses resultados a uma vacina no prazo de um ano. Para esse esforço contribuíram o programa norte-americano Warp Speed e o inglês Vaccine Drive e também o governo Alemão e o Banco Europeu de Investimento na BioNtech, que cobriram todo o risco das empresas, financiando o desenvolvimento e garantindo as compras subsequentes.

O apelo juntava às preocupações sobre o acesso um apelo à transparência. Os meses que se seguiram deixaram claro que também esse apelo seria ignorado. A Comissão Europeia assinou contratos secretos que, depois de muita insistência, foram divulgados com rasuras sobre tudo o que interessava. Mas a questão decisiva rapidamente se esclareceu: as vacinas cujo desenvolvimento foi pago pelos Estados europeus eram propriedade absolutamente privada.

Os Estados garantiram patentes para as suas empresas, colocando um gargalo na distribuição e assegurando que ficavam no primeiro lugar da fila para receber a vacina. O regime de oligopólio assim criado explora o desequilíbrio colossal entre uma procura global e uma oferta reduzidíssima. Tudo perfeito, menos a resposta à emergência sanitária. O ritmo de produção ficou totalmente subordinado à gestão das farmacêuticas, ditada pela maximização de um negócio sem precedentes. No dia a seguir a anunciar os resultados positivos nos ensaios da sua vacina, o CEO da Pfizer vendeu uma parte das suas ações, arrecadando 4 milhões de dólares de lucro. Moderna e Pfizer prometeram aos seus acionistas encaixes da ordem dos 5 e 15 milhares de milhões.

O caso mais gritante é o da União Europeia. A falta de transparência do modelo de provisão da Comissão Europeia foi um absoluto escândalo. Depois de financiar fortemente o desenvolvimento das vacinas, a Comissão prescindiu de quaisquer direitos de propriedade e os contratos secretos apenas obrigam as farmacêuticas aos seus “melhores esforços”. Este conceito tornou-se o alçapão jurídico que permitiu às multinacionais regatear o preço das vacinas armazenadas e quebrar promessas de distribuição em troca de melhores negócios, entregando-as a países que oferecessem melhores preços. Os compromissos de produção para 2020 foram quebrados (de 20 para 3 milhões nos EUA) e já em 2021 sucedem-se cortes nas promessas de entrega, gerando conflitos entre empresas e até entre nações.

Hoje, a Comissão encontra-se na humilhante posição de mendigar as vacinas encomendadas junto das empresas que financiou. Os cidadãos pagaram mas não mandam, num negócio em que se misturam fanatismo liberal, captura das instituições e incompetência pura.

Em Portugal, poucos falam da gestão catastrófica da Comissão. Para a direita, a escassez é mais um pretexto para disparar sobre o SNS. Na realidade, Portugal é dos países que mais está a vacinar na União Europeia, bem acima da média e acima de países como França ou Alemanha. Os serviços nacionais de saúde montaram sistemas de vacinação que funcionam aos solavancos, por força das insuficiências, flutuações e incerteza nas entregas.

Quanto à solidariedade global, ficamo-nos pela conversa. O mecanismo Covax não tem poder de fogo com qualquer impacto significativo, nem mesmo para cobrir pessoal da primeira linha e grupos de risco. Guterres chamou à vacina um sucesso para a ciência, mas um fracasso para a solidariedade. Mas a frase perdeu-se na corrida. As multinacionais farmacêuticas e as potências mundiais parecem viver bem com uma catástrofe humanitária à escala global.

Aqui chegados e com tanto do mal já feito, de pouco servirão as ameaças absolutamente vazias de litigância. Toda a gente sabe que a Comissão não vai para tribunal durante anos quando tem de garantir uma solução para ontem. As vacinas têm de ser produzidas em massa em todos os laboratórios preparados para o fazer. O Reino Unido, não só assegurou as compras necessárias, como aumentou a capacidade produtiva para poder assegurar a produção dentro de casa.

De pouco valerá à Comissão continuar a gritar “temos aqui um contrato”, sobretudo tendo em conta o que lá está escrito. A solução é simples, está prevista pela OMS e tem sido defendida pelos Médicos sem Fronteiras e outras ONGs. Até a Organização Mundial de Comércio reconheceu, na declaração de Doha, que o acordo TRIPS (sobre direitos de propriedade industrial) “não impede e não deve impedir os membros de tomar medidas para proteger a saúde pública.”

Ou as farmacêuticas libertam as patentes a preços razoáveis, ou essas patentes terão de ser quebradas e divulgadas livremente. A capacidade produtiva existente deve ser plenamente utilizada e alargada, na medida do possível. Já morreram mais de 2 milhões de pessoas por causa da Covid, fora as que não entram nas estatísticas. Essas vidas valem mais do que os lucros de um negócio pago por nós.

Fonte: José Gusmão, Moisés Ferreira, Bruno Maia, site http://ladroesdebicicletas.blogspot.com

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